domingo, 2 de setembro de 2012

O mal do apego


Vivo uma relação de amor e dependência. O que eu faço, pergunta leitora

"Até meus 23 anos de idade, vivi feito menina boba do interior, sem namorar nem nada, e que, de tão retraída, minhas irmãs chegaram a pensar que eu gostava era de alguém do mesmo sexo. Família de baixa renda, aos quatorze eu já trabalhava como doméstica, mas sem registro. No meu primeiro emprego de carteira assinada, os patrões pagavam o quanto queriam, porque onde moro continua um atraso só - é assim ou não se arranja trabalho algum – e foi numa loja, onde comecei fazendo faxina e só depois passei a cuidar também do caixa, por ser de confiança.

A loja existe ainda existe e é um bom negócio de família, mas quem mais ficava lá era um homem, vinte e dois anos mais velho que eu, com quem me relaciono afetiva e sexualmente até hoje, passados mais de vinte anos. Ele era casado e continua com a mesma mulher, só que me azucrina, diz que vai largá-la, que isso, que aquilo e nunca que larga.

Começou que naquele tempo ele veio pra cima de mim, me assediando e foi uma colega que facilitou tudo. Disse que ia voltar do trabalho junto comigo no carro dele, mas que antes ia passar não sei aonde, daí ela não foi, fiquei sozinha com ele e, bem, as coisas aconteceram e foi horrível para mim. No dia seguinte quis largar imediatamente o emprego e contei para a minha família, mas não contei tudo, por vergonha, por conta da nossa religião, por conta do medo, não sei direito. Minhas lembranças são muito confusas.

Só sei que lá para frente ele só ficou me cercando e nem sei como a família dele não percebeu, já que além da própria esposa, os cunhados, as cunhadas, todos estavam sempre por lá. Era demais. Eu é que saí de lá mesmo, voltei a ser doméstica e ele só ligava para a casa dos meus pais sem parar. Até no meu novo emprego. Ficou doido, deu para beber no meio do expediente. Parecia estar sendo sincero. Eu sempre pedindo, implorando que não me procurasse mais.

Cheguei a ficar com o corpo todo pipocado de manchas roxas de tanto stress. O diagnóstico foi de melancolia profunda e tomei remédio por um bom tempo. Só quando consegui sair da cidade, com um emprego no funcionalismo é que comecei a me recuperar.

Um dia resolvi ligar para ele, porque com tudo isso pelo que passei, a senhora acredita que eu sentia saudades? Pois é. Hoje eu sei que foi um erro, mas no fundo de mim eu queria mesmo que ele me procurasse. E o nosso relacionamento veio vindo assim, com altos e baixos, inclusive porque ele morre de medo de que, quando ele estiver mais velho, eu o envergonhe arrumando outros companheiros. Ele sempre diz que não sabe o que eu vi nele.
Hoje já completamos oito anos de relacionamento, entre o inferno e o céu. Já me senti uma prostituta, não por dinheiro, pois me sustento, mas por me sentir suja com a situação.

Eu o amo tanto que na falta dele parece que meu peito fica todo espremido. Já me sujeitei a situações tão humilhantes que se me contassem, não acreditaria que alguém fosse capaz, muito menos eu. Ele sente um ciúme doentio e, se vou a uma festa, ele fica sempre rondando. Depois me tortura com suas indagações. Então, acabo não tendo vida social, nem minhas orações não me sinto digna de fazê-las em minha Igreja. Sei que, quanto mais reclusa ficar, mais ele vai gostar. Tenho dois empregos e faço licenciatura à noite. Busco uma forma de ocupar meu tempo e de não viver à disposição dele para seus caprichos e horários mirabolantes.

Agora que já entrei nos meus trinta, não consigo mais sustentar esse relacionamento. Isto é viver à sombra dos outros sem ter vivido realmente. Uma vez que eu quero ser efetivamente independente preciso viver de acordo com as minhas convicções. Procuro largá-lo, penso nisso desde o nosso primeiro encontro. Quero deixar de considerar e aguardar que se cumpram suas promessas, mas não consigo. Sinto-me perdida. O que eu faço?"

A.F.


Confira a resposta da psicóloga Ana Fraiman* nas próximas páginas
Moça, a isso que você chama de amor, eu chamo de apego. Você nem teve a oportunidade de viver sua adolescência e já caiu nas mãos de um predador. Atraiçoada por uma que se dizia sua amiga e abusada por um que se prevaleceu de sua inocência e ingenuidade. Não importam os seus vinte e três anos. Idade cronológica nada significa, quando não se tem experiência de vida e maturidade emocional.

Não importa nem se com o tempo você foi aprendendo a gostar de sexo, se se apegou também a ele em razão dos prazeres e atenções que ele lhe dispensava, pelo interesse do qual você tanto carecia, porque sair de casa e enfrentar a vida sozinha também não é nada fácil. O corpo é jovem, a curiosidade é grande, os hormônios estimulam o apetite e, bem, você deixou-se ficar numa situação de embaraço e submissão da qual hoje se envergonha a ponto de não sentir-se à altura de falar com Deus.

Convenhamos, porém. Você teve, sim, um início muito traumático de vida adulta. O assédio moral e sexual de que padeceu é de arrebentar com as forças de qualquer pessoa, quanto mais de uma moça que se diz uma ‘boba do interior’. Você não sabe o que é namorar. Você não sabe o que é simplesmente sair com amigas e amigos para bater papo sem maiores preocupações. Você ainda não se recuperou desses traumas todos e não sabe o que é usufruir de um relacionamento equilibrado e sincero, do qual você se orgulhe e no qual você se sinta acolhida e segura.

Viver sob a vigilância do outro, satisfazer-lhe os apetites e os horários, deixar-se humilhar, moça, isso é escravidão. Esse é um relacionamento desigual, que já começou desequilibrado, baseado em imposições, mentiras e traições. Esse tipo de arranjo nada constrói de bom, somente conduz a maiores angústias e carências. Só que as pessoas que vivem esse tipo de coisa se habituam tanto a serem espezinhadas, que já nem mais se dão conta do tamanho da indignidade do tipo de vida a que se encontram atreladas.

Não lhe favorece nem a ele, que vive às escondidas um relacionamento que merece muito mais respeito. Tanto aquele que leva com você, como e, principalmente, aquele que mantém em sua própria casa. Ele vive dividido, tanto com medo de perder você, como com medo de vir a ser descoberto. Então, aonde conduzem tantos enganos e autoenganos, senão a mais erros?

 
Um com o outro, vocês dois vivem de ilusões, tal qual prisioneiros acorrentados a uma estaca em meio a um lago de águas límpidas, mas das quais não conseguem sorver e, portanto, nunca se saciam. A sede os tortura. Ele já sofre pela antecipação do dia em que será traído. Mas faz de tudo para que você tome a atitude de dar-lhe um basta. Você faz de tudo para manter no sonho de vir a constituir um lar com ele. Cuidado, pense bem. Sonhos também se realizam.

Já imaginei ele jogar tudo pra cima e vir mesmo, de mala e cuia, morar com você na mesma casa? É o que você quer? Com todas as manias que ele já tem e mais as tranqueiras de ciúme e possessividades e controles de seu tempo, suas roupas, seus telefonemas, suas amigas, com quem você esteve falando, porque chegou cinco minutos mais tarde e o escambau? Olha, que se eu fosse a esposa dele e tomasse conhecimento do que meu marido esteve aprontando comigo, seria a primeira a fazer as trouxas dele e vir correndo largar tudo nas suas mãos, moça, com um belo de um ‘e agora que fique com ele inteirinho pra você, aí, já que você me fez um favor, que já estou de saco cheio desse cretino, traidor’! Ou ele é um marido tão maravilhoso assim, destes que não dá para dispensar?

Mas eu não sou esposa dele e você não é minha filha. Portanto, se depois que você leu tudo isso, você ainda sentir que ama esse homem, que ele é, sim, o homem da sua vida e que, apesar dos pesares, é por ele que você quer lutar, faça com que ele lute por você, oras. Do jeito que está, está fácil demais. Em nome do que você abre mão de tanta coisa para conservá-lo, mas só pela metade? Autoestima é bom e faz bem. E se a sua anda em baixa, faça de conta que a tem. Tome a atitude que tem que tomar, dê-se ao seu valor e pare de se deixar humilhar. Lembre-se, você nem sabe direito o que é amar e ser amada. Você sabe o que é viver sob constantes ameaças, sabe o que é ficar chorando pelos cantos e implorar para ser considerada. Que tal você fazer uma psicoterapia aí na sua cidade? Ou perto. Pode ser em grupo. Ajudará muito.

E em relação a Deus, é com Ele mesmo que você precisa falar. Vergonha só fecha a questão. Apresente-se a Ele com a mente e o coração abertos, peça misericórdia por haver aceitado viver por tantos anos em condições tão desfavoráveis ao seu crescimento como mulher. Permita-se perdoar-se, que em Sua bondade e sabedoria infinitas, tudo que é preciso lhe será conferido, para que você deixe de agir tal e qual moça-boba-do-interior. Pode continuar a viver no interior, mas não precisa ser feito boba. Viva de cabeça erguida, inteira, sentindo orgulho da pessoa que você é. Ninguém merece sentir vergonha de si mesma. Isso é muito tóxico para a alma. Boa sorte, moça.



*Ana Fraiman é psicóloga formada em Psicologia Social, especialista nas áreas clínica e social, com mestrado pela USP e, atualmente, cursa doutorado na PUC de São Paulo na área de Antropologia. Possui vários livros publicados, é articulista e Diretora da APFraiman Consultoria, empresa pioneira em Programas de Preparação para a Aposentadoria e Pós-carreira.

 

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